Quem lida diariamente comigo sabe e, de certo modo, compreende o meu fascínio pela morte. Não pelo facto em si ou por ver pessoas mortas, porque não o faço nem o quero fazer. O meu fascínio nasce de uma outra coisa. Dos cemitérios. Não. Não pensem que “ah esta garota é louca e mórbida, iaccc”, ou “xiii, nunca mais cá venho!”. Porque considero este meu fascínio a coisa mais banal do mundo.
Com certeza todos têm um local onde se sentem bem. Algum sítio onde respirar é mais fácil e onde o corpo não pesa tanto. Quando entro num cemitério é isto mesmo que me acontece. Sinto uma verdadeira Paz. Sinto-me leve. Sinto-me mais eu. Sinto-me mais humana.
Sei que quando caminho por entre as campas de pessoas que nunca conheci, estou a inventar mil histórias na minha cabeça. Olho as fotos. Vejo as datas de nascimento e de extinção. E ponho-me a imaginar as vidas daquelas pessoas. Como terão sido? O que terá acontecido? Será que a morte lhe doeu mais ou aos que o/a rodeavam?
Depois reparo em todos aqueles que morreram antes de 74 e nunca viram a revolução dos cravos e penso: “morreste a pensar que a ditadura era banal, e que não havia futuro”. E isto entristece-me deveras. Porque todos deveríamos conhecer a palavra liberdade. Há ainda aquelas mulheres, enterradas com os respectivos maridos, que com certeza as mal tratavam, as violavam, as agrediam… porque dantes era assim… a “teoria do aguenta”.
Este sábado fui ao cemitério com a minha mãe, colocar flores na campa da minha avó e do meu avô (que eu nunca conheci). Recordei-me de quando era miúda e ia lá com a minha avó colocar flores naquilo que era, naquela altura, apenas a campa do meu avô. Doeu-me saber que é ela que agora está lá dentro. E apeteceu-me gritar e dizer :”vó… salta cá para fora, que o avô tem as flores secas”.
Mas isso não aconteceu, como era de esperar…
Ao lado estava uma mãe com uma criança dos seus 10 anos. Esta, mal chegou à última morada dos seus avós, beijou freneticamente a fotografia dos mesmos. E disse: “olá avó!”, e depois “olá avô”. Comoveu-me. Porque aquela campa estava lá há bem mais de 10 anos. Aquela criança nunca conheceu os avós para além das fotos redondas da sua campa. E aquilo servia-lhe. E amava aquelas fotos como se de os verdadeiros avós, de carne e osso, se tratassem.
É fascinante o nosso mundo e as nossas crenças…
Enquanto atravessávamos uma última vez as ruas da morte (que me dão tanta vida!), reparei, mais uma vez na mentira das flores plásticas, colocadas nas campas mais belas de todo aquele local. Uma afronta a quem está lá em baixo. Colocar flores que nunca morrem, em cima de um morto é uma ironia. É quase como se estivéssemos a dizer “hei, tu morreste, mas coloco-te algo que te enfeita e que nunca morre contigo, para que possas sentir pena daquilo que deixaste”…
Mais uma coisa que me magoou. E muito. Porque eu respeito muito que está morto. É quem me fascina para eu escrever histórias. São aquelas pessoas fechadas naquelas quadrados. Aquelas pessoas que me sorriem sempre com o mesmo sorriso da mesma fotografia há 20 anos. Um dia vou retirar todas as flores plásticas e colocar flores vivas em todas as campas. E dizer:
“boa noite, estas vão morrer convosco, como um sinal de que todos caminhamos para a morte”.
E saí. Com a dor entalada na garganta. Ainda com a areia da morte presa nas sapatilhas. Mais leve que nunca…
12 comentários:
Bolachinha, acabei de ler o teu texto e não sei o que aqui escrever.
Podia dizer-te que muitas daquelas campas já nem pó da pessoa têm...fazendo a comparação com as flores de plástico. Mas não quero ir por aí.
Apenas te quero dizer que se é um local que te trás paz, ainda bem. E se te der um vaipe de mudares as flores todas das campas e precisares de ajuda, estamos aqui para isso.
Bjs
p.s a parte a garota de 10 anos é estranha...não te vou dizer que me comoveu porque não presenciei a cena, mas é algo que mexeu comigo
nem sei o que escrever :S
É sem dúvida uma questão profunda. O fascínio pelas últimas moradas. A espiritualidade associada ao que há depois, e ao que houve antes. Suspeito que seja genético.
Este fascínio não é meramente cultural. Sentimos a quebra dos laços de sangue.
Beijinhos.
Tinha uma leve sensação de que iria custar às pessoas escrever e comentar este tema... mas o pessoal surpreendeu-me na positiva...
é verdade hole hoje já não se pode morrer descansado,nunca se sabe os vandalismos com flores de plástico que podem colocar na nossa ultima morada...
Alien, butes então? Cemitério da Batalha, sábado dia 14, pelas 16 horas... eh eh eh
casemiro, nem sei o que te responder... lol
Monarquinha... achas que é genético... mmmmmm, bem pensado, mas será de que parte...?Uma questão para meditar...
Chihiro podes crer que é lá que a minha imaginação brota... tudo nasce do nada, mas nada se transforma em nada, certo?
Beijocas e espero que tenham passado um optimo fim de semana...
Mas se calhar essas pessoas que recebem as flores depois de mortas, nunca receberam uma mera flor quando estavam vivas. Há muita hipocrisia ligada à morte...depois de morrerem, todos são boas pessoas, e lá vai tudo em romaria para o cemitério. Mas será que quando estavam vivas, alguém lhes disse o quanto eram importantes?
Saudações!
Obrigado por compartilhar um pouquinho de seu espaço comigo
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Tenha um Lindo dia
Cadi
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Alma da Terra
Discordo contigo Mac. Vai tudo em romaria para o cemitério, comprar coroas de flores no dia do funeral. e choram-se pessoas ou que mal conhecemos ou ainda que nem gostavamos enquanto eram vivos... Agora, anos depois, quem é que lá vai! Perdem-se no esquecimento!!!!
Mas é precisamente aí que eu queria chegar. Algumas pessoas só são lembradas na morte, depois caiem no limbo do esquecimento. É por isso que digo que há muita hipocrisia a rodear o ritual da morte.
Ok... Chegamos a um consenso... ainda bem... eh eh eh
Olá Bolachinha :)
Interessante o texto, mas a cena dos cemitérios... :| E a miúda de 10 anos...:(
Sem dúvida da parte que nos faz a cara mexer consoante os quimícos dos sentimentos se misturam...
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