sábado, fevereiro 24, 2007

O 10.º Guardanapo do Aeroporto

"O 10.º Guardanapo do Aeroporto" surge numa noite passada no Aeroporto da Portela enquanto esperava o meu avião para a Madeira, onde fui passar umas merecidas férias. Não é mais que uma série de dez pensamentos soltos e palavras interditas que tenho todo o gosto em partilhar.
De notar que, uma vez que só tinha uma caneta, tudo isto foi escrito em guardanapos de papel. Daqueles que estão apertadinhos naquelas caixas metálicas ou plastificadas em cima das mesas de café.
Uma boa leitura.

I

E ela era toda azul com um gorro azul riscado de branco e amarelo. Ela era toda sapatos pretos da cor do veludo “da barata diz que tem”. Ela era toda simplicidade misturada com alegria. Ela passou e nem me viu. E eu, também eu, daqui a um pensamento já nem me lembrarei do que olhei.

Acordem-me noutra geração.

II

E se pegasse num guardanapo e lá escrevesse e exprimisse todos os meus sentimentos? E se o rasgasse como tenho rasgado a felicidade e partisse para outra mesa? Os pensamentos, antes dispersos na minha mente, estão agora dispersos na mesa suja do café, misturados com migalhas de sandes de €3.

Há quem roube pensamentos? Há quem roube corações, é verdade. Não desminto. E coloco a minha mão sobre a bíblia. “Eu juro”. E prometo que não vou engelhar mais o coração, nem consumir a alma.

Mas os papéis rasgados lá continuam, encimando a mesa. Esquecidos pelo empregado que limpou a mesa 5 com o seu pano amarelo e o seu sorriso cor de laranja. Gostava de ter um sorriso cor de laranja de um empregado. Um sorriso que é mais fingimento que sorriso. Assim fingia a vida em vez de a viver. O que me poupava uma trabalheira de palavras entreditas e de questões éticas.

III


Se eu fosse de algodão, gostava de me apalpar todos os dias. Mas não queria ser um daqueles discos de limpeza de pele. Daqueles que retiram a maquilhagem. Não quero tirar nada a ninguém. Só quero dar.

Quero ser daqueles algodões embebidos em Betadine que curam as feridas. No entanto, se me rasgassem a mim, qual pobre algodão, quem limparia as minhas feridas? Ninguém. Depois de usado o algodão vai para o lixo.

IV


Olhaste para a esquerda primeiro. Seguiu-se a direita e vislumbraste toda a vida em frente. Era uma passadeira rolante que funcionava a petróleo Iraquiano ou Americano, ou o raio que o parta.
Tinhas o cabelo espetado em direcção ao céu e seguravas toda a verdade. Apenas a tua. Prendias a atenção em notas de música e a leituras de livros. Eras todo tu e todo meu. No momento de loucura, da paixão das unhas cravadas na pele.
Eras o café das noites longas e o abatanado das manhãs inseguras. Eras o guardanapo do desespero e a lâmpada da ilusão.
Chegaste a mim apenas de meias. Daquelas com pedaços de plástico na sola dos pés de andar por casa e pela vida. Nem te vi chegar e muito menos te vi partir. Quando te perdi nem sabias que te tinha encontrado e quando te encontrei já te tinhas esvanecido.
Eras tu. De sapatilhas cor de laranja a empurrar a vida com a gravata apertada.

Eras tu o que nunca foste.

V


O espaço em frente estava vazio. Esperei por ti a noite toda. Mas o castanho da cadeira sufocou-me.
Ao fim de 15 minutos não agüentei e afoguei-me nos muros da cidade (des)conhecida. Quis tanto que não aparecesses, que não apareceste mesmo. Quis tanto que não existisses, que te lembraste, desta vez, de me fazer a vontade.

VI


O Fernando Pessoa também escrevia em guardanapos. Não foi por isso que foi mais feliz. Mas hoje, estes guardanapos nunca limparam tão bem a minha alma.

VII

Se me sufoco é porque não sei respirar. Se respiro é porque não me sei matar. Se existo é porque não sei pensar. Se escuto é porque não sei tocar. Se consigo é porque não sei tentar. Se falho é porque não sei escrever. Se desapareço é porque não sei falar. Se grito é porque não sei cantar. Se choro é porque não sei viver.

Se falo é porque sei magoar.

VIII

Cheira-me a tinta. Não à tinta das minhas telas por pintar, mas a tinta de caneta. A minha tem inscrito “superb”. Será soberba?

Questiono-me sobre o interesse desta divagação.

IX

O espaço estava vazio e espelhava sobre o chão as luzes do tecto. Também gostava de ter luzes e de ter um tecto. Isto de se ter de viver em casas e não poder andar com a casa às costas, tem muito que se lhe diga.

Gostava de abrir o armário de cada vez que coço o nariz. De ir à casa de banho, quando pisco os olhos. Gostava de ver televisão a cada abrir de braços e de cozinhar massa com queijo e cogumelos de cada vez que esboço um sorriso.

Gostava de viver contigo debaixo das minhas unhas e de fazer amor em cima da minha pele. Gostava de esquecer e de reviver tudo outra vez.

Gostava que isto, onde escrevo, não fosse apenas um guardanapo.

X


Vou dar um saltinho até ali, mas gostava de não sair daqui.
A minha mente é um planisfério sem mala de viagem incluída.
O meu pensamento não sai daqui,
Mas vai até ali de quando em vez.
E por vezes esquece-se de mandar postal.
Perde-se e não sabe onde vai.

O meu pensamento deve ter filhos algures.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

O meu escritor On-line


Tenho um escritor on-line, [Miguel Manso, que citei variadas vezes].

Conheço alguém que me faz ler um bocadinho de um livro todos os dias. Cada dia, um capítulo, uma história. Sempre online, qual ensino a distância...

E confesso que fico pasma com a criatividade. Com o talento.

O talento arrepia-me. Arrepiam-me as palavras. Até há cheiros e cores e gestos que me arrepiam quando tocam nas palavras, quando se transformam em palavras.

A cor dos dias nada mais é reflexo de um pensamento irrepetido de uma consciência olvidada. Afastamos tudo o que não é perceptível ou que julgamos imperceptível. Afastamos as coisas que não queremos ver. Afastamos o cinzento das manhãs; a humidade das horas do almoço; o obsoletíssimo vestuário; a mágoa de continuar; o querer avançar, mas ao mesmo tempo o desejar fugir.

Esquecemo-nos da ida ao café; do que comemos na noite passada. Por vezes até se nos escapam as pessoas com quem estivemos: quem foi, o que se falou. Esquecemo-nos daquela frase magnífica inventada à pressão em cima do guardanapo, que por sua vez ficou, também ele esquecido, entre os bolos do caixote do lixo da pastelaria, ou padaria ou café;

O que quer que seja que venha a acontecer, que aconteça!

[pensamos]

E vamo-nos esquecendo, das pequeninas coisas, que são só e apenas as coisas de que necessitamos para vivermos de sorriso Pepsodent nos lábios, ou para ser um artista da literatura.

Porque o que há de belo em cada livro é a sua semelhança com o quotidiano. E o que o artista faz é descrevê-lo, tão “geniosamente” que nos deixa maravilhados e boquiabertos.

Eu encontrei o meu génio. Que me faz ler um bocadinho todos os dias.

«Um dia apaixonei-me por uma mulher mas antes disso arranjei um gato. Uma gata, mais
precisamente, que veio cá para casa quando era muito pequena. Não bastando isso de andar a trazer bichos para casa, a mulher por quem me apaixonei não se apaixonou por mim mas apaixonou-se pela gata, que não se apaixonou por ela nem por mim. Mas a gata era toda olhos redondos da cor da folha de louro seca e olhava-nos profundamente sem desviar o olhar (era uma gata napolitana nascida num pátio do bairro da Graça).»

Miguel Manso, Cap. 18 - Le Bassin de John Wayne, in AS RESPIRAÇÕES DE MARAT

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

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Nunca um coxo treinou atletas para a maratona nem um mudo deu aulas de dicção.Só os padres não prescindem de dar conselhos sobre a reprodução e a sexualidade!

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

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«Lá onde tudo se resolve. No Nada
[by Miguel Manso em AS RESPIRAÇÕES DE MARAT]

Doze razões por Vital Moreira

«Sou a favor da despenalização do aborto, nas condições e limites propostos no referendo, ou seja, desde que realizado por decisão da mulher, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas de gravidez. Eis uma recapitulação das minhas razões.

1.ª - O que está em causa no referendo é decidir se o aborto nessas condições deve deixar de ser crime, como é hoje, sujeito a uma pena de prisão até 3 anos (art. 140.º do Código Penal). Por isso, é francamente enganador chamar ao referendo o "referendo do aborto" ou "sobre o aborto", como muita gente diz. De facto, não se trata de saber a posição de cada um sobre o aborto (suponho que ninguém aplaude o aborto), mas sim de decidir se a mulher que não se conforma com uma gravidez indesejada, e resolve interrompê-la, deve ou não ser perseguida e julgada e punida com pena de prisão.

2.ª - Não há outro meio de deixar de punir o aborto senão despenalizando-o. Enquanto o Código Penal o considerar crime (salvas as excepções actualmente já existentes), ninguém que pratique um aborto está livre da humilhação de um julgamento e de punição penal. Quem diz que não quer ver as mulheres punidas, mas recusa a despenalização, entra numa insanável contradição. Não faz sentido manter o aborto como crime e simultaneamente defender que ele não seja punido.

3.ª - A actual lei penal só considera lícito o aborto em casos assaz excepcionais (perigo grave para vida ou saúde da mulher, doença grave ou malformação do nascituro, violação). Ao contrário do que correntemente se diz, a nossa lei não é igual à espanhola, que é bastante mais aberta do que a nossa e tem permitido uma interpretação assaz liberal, através da cláusula do "perigo para a saúde psíquica" da mulher. Por isso, a única saída entre nós é a expressa despenalização na primeira fase da gravidez, alterando o Código Penal, como sucede na generalidade dos países europeus.

4.ª - A despenalização sob condição de realização em estabelecimento de saúde autorizado (por isso não se trata de uma "liberalização", como acusam os opositores) é o único meio de pôr fim à chaga humana e social do aborto clandestino. Esta é a mais importante e decisiva razão para a defesa da despenalização. Nem a ameaça de repressão penal se mostra eficaz no combate ao aborto, nem a sua legalização faz aumentar substancialmente a sua frequência. A única coisa que se altera é que o aborto passa a ser realizado de forma segura e sem as sequelas dos abortos clandestinos mal-sucedidos. Por isso, se pode dizer que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública.

5.ª - Se se devem combater os factores que motivam gravidezes indesejadas, é humanamente muito cruel tentar impô-las sob ameaça de julgamento e prisão. É certo que hoje há mais condições para evitar uma gravidez imprevista (contraceptivos, planeamento familiar, etc.). Mas a sociologia é o que é, mostrando como essas situações continuam a ocorrer, em todas as classes e condições sociais, mas especialmente nas classes mais desfavorecidas, entre os mais pobres e menos cultos, que acabam por ser as principais vítimas da proibição penal e do aborto clandestino (até porque não têm meios para recorrer a uma clínica no estrangeiro...).

6.ª - A despenalização do aborto até às 10 semanas é uma solução moderada e, mesmo, comparativamente "recuada", visto que em muitos países se vai até às 12 semanas. Por um lado, trata-se de um período suficiente para que a mulher se dê conta da sua gravidez e possa reflectir sobre a sua interrupção em caso de gravidez indesejada. Por outro lado, no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. Como escrevia há poucos dias um conhecido sacerdote católico e professor universitário de filosofia: "A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marco" que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído."

7.ª - Só a despenalização e a "desclandestinização" do aborto é que permitem decisões mais ponderadas e reflectidas, incluindo mediante aconselhamento médico e psicológico. Embora o referendo não verse sobre os procedimentos do aborto legal, nada impede e tudo aconselha que a lei venha a prever uma consulta prévia e um período de dilação da execução do aborto, como existe em alguns países. Aliás, o anúncio de tal propósito poderia ajudar o triunfo da despenalização no referendo, superando as hesitações daqueles que acham demasiado "liberal" o aborto realizado somente por decisão desacompanhada da mulher.

8.ª - A despenalização do aborto nos termos propostos não viola o direito à vida garantido na Constituição, como voltou a decidir o Tribunal Constitucional, na fiscalização preventiva do referendo. No conflito entre a protecção da vida intra-uterina e a liberdade da mulher, aquela nem sempre deve prevalecer. O feto (ainda) não é uma pessoa, muito menos às dez semanas, e só as pessoas são titulares de direitos fundamentais e, embora a vida intra-uterina mereça protecção, inclusive penal, ela pode ter de ceder perante outros valores constitucionais, nomeadamente a liberdade, a autodeterminação, o bem-estar e o desenvolvimento da personalidade da mulher. Mas a punição do aborto continua a ser a regra e a despenalização, a excepção.

9.ª - A decisão sobre a legalização ou não do aborto não pode obedecer a uma norma moral partilhada só por uma parte da sociedade. Ninguém pode impor a sua moral aos outros. É evidente que quem achar, por razões religiosas ou outras, que o aborto é um "pecado mortal" ou a violação intolerável de uma vida, não deve praticá-lo. Pode até empregar todo o proselitismo do mundo para dissuadir os outros de o praticarem. Mas não tem o direito de instrumentalizar o Estado e o direito penal para impor aos outros as suas convicções e condená-los à prisão, caso as não sigam. A despenalização do aborto não obriga ninguém a actuar contra as suas convicções; a punição penal, sim.

10.ª - A despenalização é a solução a um tempo mais liberal e mais humanista para a questão do aborto. Liberal - porque respeita a liberdade da mulher quanto à sua maternidade. Humanista - porque é o único antídoto contra as situações de miséria e de humilhação que o aborto clandestino gera. Quando vemos tantos autoproclamados liberais nas hostes do "não", isso é a prova de que o seu liberalismo se limita à esfera dos negócios e da economia, parando à porta da liberdade pessoal. Quando vemos tanta gente invocar o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização, ficamos a saber que para eles vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas. Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos!

11.ª - Na questão da despenalização do aborto é verdadeiramente obsceno utilizar o argumento dos custos financeiros para o SNS. Primeiro, o referendo não inclui essa questão, deixando para a lei decidir sobre o financiamento dos abortos "legais". Segundo, mesmo que uma parte deles venham a ser praticados no SNS, o seu custo não deve comparar desfavoravelmente com os actuais custos da perseguição penal dos abortos, bem como das sequelas dos abortos mal sucedidos.

12.ª - A despenalização do aborto, nos termos moderados em que é proposta, será um sinal de modernização jurídica e cultural do país, colocando-nos a par dos países mais liberais e mais desenvolvidos, na Europa e fora dela (Estados Unidos incluídos). A punição penal do aborto situa-nos ao lado de um pequeno número de países mais conservadores e mais influenciados pela religião (como a Irlanda e a Polónia). Mas por que motivo um Estado laico deve pautar o seu Código Penal por normas religiosas?»
[in Público, Terça-feira, 23 de Janeiro de 2007]